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Na Guerra Fria, a URSS chegou a trabalhar em um projeto de rede interligada de computadores. Mas a ideia falhou por conflitos de interesses pessoais dos dirigentes do regime soviético

DETALHE DO IMP (INTERFACE MESSAGE PROCESSOR), EQUIPAMENTO USADO PARA CONECTAR REDES DA ARPANET

A União Soviética esteve perto de inventar uma rede interligada de computadores, como a internet, durante a Guerra Fria.

A história é relativamente desconhecida - mas foi investigada pelo historiador e professor da Universidade de Tulsa, nos EUA, Benjamin Peters. Ele é autor do livro “How Not to Network a Nation: The Uneasy History of the Soviet Internet” (“Como não conectar uma nação: a complicada história da internet soviética”, em tradução livre), ainda sem edição em português.

Peters, que é especializado em história russa, usou documentos da CIA, agência de inteligência americana, da antiga União Soviética e entrevistas para mergulhar na história da corrida tecnológica entre os dois blocos ideológicos na Guerra Fria, que só viria a ter fim com a queda do Muro de Berlim no fim dos anos 80.

Ele descobriu os detalhes do projeto Ogas, “obshchee-gosudarstvennaya avtomatizirovannaya system”, um acrônimo russo que significa “All State Automated System”, ou “sistema automatizado de todo Estado”.

O Ogas, no entanto, fracassou. E isso não teve nada a ver com o surgimento paralelo da Arpanet americana, o protótipo do que viria a ser a internet. O projeto soviético encontrou obstáculos em interesses pessoais de dirigentes do regime e divergências sobre as aplicações da tecnologia.

Peters argumenta que, ao menos no processo de desenvolvimento de uma rede de computadores interligada na Guerra Fria, ironicamente, os capitalistas triunfaram porque se comportaram mais como comunistas, enquanto os soviéticos fracassaram porque a maneira como conduziram o projeto tinha muitos elementos do capitalismo.

A origem da internet e a Guerra Fria

A internet como a conhecemos foi criada pelos EUA nos fim dos anos 1960 como parte dos esforços para superar tecnologicamente a União Soviética. Na Guerra Fria, a corrida tecnológica e espacial entre os dois blocos não era apenas uma estratégia militar, mas também uma maneira de provar a superioridade ideológica de dois modelos opostos: capitalismo e comunismo.

A rivalidade e a tentativa constante de cada bloco de superar o outro tecnologicamente geraram frutos como a chegada do homem à Lua e o lançamento do satélite artificial soviético Sputnik 1. Muitas das descobertas anunciadas pelos dois blocos eram paralelas, em uma corrida na qual os dois competidores se alternavam no primeiro e segundo lugares.

Mas a herança mais notória desse período de disputa tecnológica para o mundo foi a Internet. A Arpanet - rede militar descentralizada que conectava bases militares e departamentos de defesa e pesquisa dos EUA - surgiu como resultado da competição.

O projeto foi desenvolvido com a ajuda de subsídios do Ministério da Defesa dos EUA e colaboração entre cientistas americanos, franceses e ingleses.

Foi a Arpanet que deu origem, poucos anos depois, à internet para uso acadêmico e civil - que só se popularizou de fato na sociedade no fim dos anos 1980.

A história do Ogas

O Ogas foi conduzido pelo cientista soviético Viktor M. Glushkov, que era diretor do Instituto de Cibernética de Kiev, na Ucrânia, nos anos 1950 e 1960, e era considerado por colegas cientistas “a frente de seu tempo”.

A proposta era construir uma rede descentralizada, hierarquizada e em tempo real de gerenciamento de informação - algo semelhante ao que hoje chamamos de “computação na nuvem”.

O objetivo era facilitar o controle do Estado soviético sobre fábricas e empresas do regime e integrar economicamente todos os Estados da URSS.

Na União Soviética, uma rede centralizada de computadores significaria, portanto, um aumento das possibilidades e do apelo do controle do Estado sobre a economia: seria dar um largo passo à frente na demonstração de que o comunismo era um regime superior e inclusive com viabilidade administrativa.

A URSS tinha, à época, além dos motivos, os conhecimentos tecnológicos necessários e infraestrutura para fazer com que um projeto desse acontecesse. Além disso, o regime era conhecido pelas ambições e projetos megalomaníacos na área tecnológica.

Por que o Ogas fracassou

De acordo com a pesquisa de Peters, a falha do projeto aconteceu por divergências administrativas, falta de consenso, burocracia, corrupção e falta de pragmatismo entre os dirigentes da URSS e aqueles que conduziam o projeto.

Documentos importantes se perdiam, reuniões eram adiadas, manda-chuvas discordavam constantemente sobre os detalhes da rede, seus propósitos e sobre quem e como ela deveria, de fato, beneficiar quando fosse implantada.

Por isso, Peters diz que a história da criação da internet é uma em que capitalistas se comportaram como comunistas e comunistas se comportaram como capitalistas: enquanto o projeto Ogas foi malsucedido em razão de uma competição sem regulação entre instituições e outros agentes do governo soviético que tinham interesses próprios e de burocracia, a Arpanet foi criada com subsídios estatais por parte do Ministério de Defesa dos EUA e esforços colaborativos de pesquisa entre órgãos americanos e de outros países.

O resultado da série de entraves que impediram o projeto Ogas de ganhar vida foi que, nos anos 1980, ele acabou implementado com um caráter completamente diferente da proposta em sua concepção: servidores desconectados entre si, sem interoperabilidade, em centros locais de controle de fábricas da URSS - bem diferente da ideia da internet.

Como a internet seria se tivesse sido criada pela URSS

Apesar das discussões mais recentes sobre como a internet se dividiu em pequenas redes constituídas de bolhas sociais e sobre o controle de órgãos governamentais e empresas privadas sobre a informação, a internet foi concebida de forma técnica pelos EUA como uma rede cujo conceito não concebia hierarquias entre computadores.

É uma rede descentralizada e que cresceu por meio de cultura colaborativa de consumo e alimentação de informações. E esse é um conceito oposto àquele empregado ideologicamente pelo regime soviético: censura, hierarquias de comando e uma cultura de controle em todas as esferas.

Para o autor do livro, uma internet criada pela URSS teria valores muito diferentes daqueles que a nossa internet possui - talvez sequer tivesse se transformado na internet comercial como a conhecemos.

“Os valores que concebemos, introduzimos e definimos para a tecnologia - que, por exemplo, ferramentas digitais são de certa forma democráticas porque permitem ações participativas, representativas e deliberadas - são tão temporários quanto as sociedades que sustentam esses valores.” Benjamin Peters Historiador e autor de “How Not to Network a Nation: The Uneasy History of the Soviet Internet”, em entrevista ao site do MIT

A conclusão é que os valores das tecnologias que criamos são, na verdade, reflexo dos valores da nossa sociedade. E na medida em que esses valores mudam - inclusive, por influência da inserção da tecnologia - as tecnologias acompanham essa mudança.

Para o autor, contudo, a discussão sobre o poder e os valores intrínsecos de grandes redes de computadores já deixou de ser sobre a oposição entre mercados privados e Estados - e passou a ser sobre como grandes organizações que trabalham com tecnologia de redes têm sido criadas, cada vez mais, para coletar informações sobre indivíduos.


Mateial Original : NEXO Jornal

Autor: Ana Freitas