Já conquistamos, como indivíduos, uma série de liberdades importantes na vida real, mas na web ainda somos vassalos de senhores feudais. É esse conjunto de liberdades, quando aplicadas à nossa vida virtual, que chamo de computação soberana.

Trata-se de podermos participar de uma nova web como partes autônomas, independentes e vivenciar serviços e aplicativos inovadores que sequer sonhamos hoje.

A grosso modo, se a web tradicional é o feudalismo, a web soberana é o livre mercado.

OS PROBLEMAS DA WEB ATUAL

Estruturada como um sistema feudal, a web não permite que as pessoas interajam livre e diretamente entre si. Muita gente não se dá conta disso. Você só pode interagir com outra pessoa, se ambos estiverem usando o site ou o aplicativo da mesma empresa (feudo) e obedecendo suas regras, como bons vassalos.

As pessoas não têm sequer uma identidade própria no mundo virtual. Todas as identidades na web são subordinadas a algum feudo e controladas por ele. Você não é “Fulano” na web, você é “fulano@feudo.com”, “Fulaninho2018 do Facebook”, “Fullaannoo do Instagram”, e por aí vai.

Nem a própria Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel), por exemplo, consegue se comunicar diretamente com seus seguidores brasileiros. Depende de quatro empresas estrangeiras para isso: Facebook, LinkedIn, Twitter e Instagram.

A web tradicional tem uma série de problemas estruturais:

Vigilância massiva (mass surveillance), ocasionando a perda de privacidade das pessoas e a perda de soberania das nações.

Exemplo real: a revelação de Edward Snowden sobre a vigilância da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos.

Centralização de dados pessoais na mão de algumas poucas empresas da web.

Exemplo real: em abril de 2018, Mark Zuckerberg foi chamado perante o Senado americano e questionado por horas sobre o modelo de negócios do Facebook.

Atravessadores

Exemplos reais: Mercado Livre, OLX, Decolar, Uber, Airbnb… A lista é extensa!

Fragmentação e incompatibilidade de serviços.

Exemplos reais: múltiplos sistemas de mensagens instantâneas incompatíveis, redes sociais desconexas, mercados de compra e venda que não se conversam, criptomoedas incompatíveis, etc.

Dependência: Se qualquer uma das empresas citadas até aqui desaparecer, você e todos os outros usuários podem perder os dados ali armazenados e “aquele abraço”. A empresa não tem obrigação legal nenhuma.

Depois de vinte anos de popularização da web, alguns governos tentam mitigar parte desses problemas fundamentais através de legislação paliativa, com leis que dão os primeiros passos de encontro à computação soberana:

– Garantia de Neutralidade da Rede no Marco Civil da Internet no Brasil

– GDPR da União Europeia

– Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil

A maioria das pessoas enxergam esses problemas da web como inevitáveis, como algo natural. Estão felizinhas brincando dentro de seus feudos e não conseguem sequer imaginar como seria uma web livre e irrestrita.

Você consegue?

COMPUTAÇÃO SOBERANA

A solução é um aplicativo de uso simples, para rodar nos dispositivos das pessoas e funcionar como uma plataforma para outros aplicativos. Essa plataforma pessoal soberana fornece os seguintes serviços:

1) Identidade própria (“Self-sovereign identities”)

Permite ao usuário se identificar na rede de forma independente, sem estar subordinado a uma empresa.

2) Contatos sociais

A lista de contatos é de propriedade do usuário e controlada por ele. Não precisa mais ser parcial e redundantemente recriada toda vez que surge uma nova “rede social” como Facebook, Twitter, Instagram e LinkedIn.

3) Conectividade direta

Seja através de redes mesh, seja através da internet normal, a plataforma soberana fornece conectividade transparente, segura e direta a seus contatos, abstraindo a complexidade presente nos protocolos da internet e sem a necessidade de empresas intermediárias.

4) Segurança e privacidade dos dados

A plataforma cria automaticamente para o usuário uma “nuvem pessoal”, compartilhando armazenamento com pares distribuídos pela rede. O conceito é explicado nesta animação lúdica. A criptografia é sólida, resistente até a computação quântica. A solução é muito mais segura que deixar dados hospedados em uma nuvem proprietária, como as da web atual. Todos os documentos, fotos, vídeos e dados em geral passam a estar seguros e sob o controle do usuário.

TÁ, E DAÍ? (AS NOVAS APLICAÇÕES)

Na verdade, para os usuários, a segurança e a privacidade trazidas por uma plataforma soberana nem são tão importantes. O que importa mesmo são as novas possibilidades de aplicação.

Você pode lançar mão da sua rede social inteira para fazer o que quiser (e o que o seu contato permitir), e não apenas o que as empresas da web tradicional, que hoje hospedam partições de sua rede social, te deixam fazer.

Como os dados estão sob o controle do usuário (não em algum servidor do Facebook) e como as aplicações rodam completamente nos dispositivos do usuário (não em algum servidor da nuvem), é como se qualquer desenvolvedor de aplicação do mundo pudesse escrever uma versão melhor de qualquer parte do “Facebook” soberano, acessando todos os seus dados, e coloca-lá no ar sem precisar de servidor nenhum e sem permissão de ninguém além do próprio usuário.

Você consegue vislumbrar as implicações disso?

Qualquer desenvolvedor de aplicação vai poder criar uma aplicação de nuvem ou integrar aplicações existentes, sem servidor nenhum e escrevendo apenas o código cliente.

“Não vai ser necessário que todo mundo comece a usar essas novas aplicações ao mesmo tempo?”

Não. Algumas aplicações, como redes sociais e mercados, requerem uma massa crítica de usuários. Muitas aplicações, porém, já fazem sentido quando apenas duas pessoas querem usá-las. Outras, fazem sentido para pequenos grupos, e assim a adoção vai crescendo. Mesmo as redes sociais tradicionais que chegaram atrasadas no mercado e foram bem-sucedidas não começaram grandes.

“Não vai ser necessário que todo mundo use a mesma aplicação e a mesma plataforma soberana?”

Não. No mundo real, é necessário que todo mundo fale a mesma língua para compartilhar receitas culinárias, conhecimento médico, artístico e científico vindo do mundo todo? Não é. Da mesma forma, plataformas diferentes e aplicações diferentes podem facilmente converter, por exemplo, ofertas do “OLX soberano” para ofertas do “Mercado Livre soberano” (e vice-versa) e fazer os dois mercados serem vistos completamente pelos usuários de qualquer um deles, como um só.

A fragmentação dos marketplaces na web tradicional não se deve a uma dificuldade técnica e muito menos à vontade dos usuários. É simplesmente contrário aos interesses do controlador do mercado maior compartilhar suas ofertas com um mercado menor.

Como os dados estarão sob controle dos usuários e não mais presos nas empresas controladoras dos mercados online, e como fazer os mercados se falarem é do interesse desses mesmos usuários, teremos a unificação de todos os mercados online, da mesma forma que é único e sem fronteiras o mercado informal na vida real, no mundo todo.

Os aplicativos de mensagens instantâneas da web são muito parecidos entre si. Do ponto de vista do usuário, não existe grande razão para serem diferentes: é só mais trabalhoso ter que lembrar em qual aplicativo buscar aquela mensagem trocada com o amigo. Soberanamente, posso escolher a interface que mais me agrada, para ler todas as minhas mensagens, independentemente de protocolo. Soberanamente, posso, por exemplo, decidir usar um app que só aceita mensagens vindas de alguém que tem o aval de algum amigo meu.

É o fim do spam. Um uso simples do conceito da soberania em aplicações de mensagens eliminaria o problema insolúvel do email, sistema fundamental da web, desde seu início.

Só no meu protótipo do Sneer, já é 9 vezes mais fácil fazer ações como compartilhar a música que estou ouvindo no Spotify com a pessoa com quem estou falando, que fazer o mesmo usando o Whatsapp, mesmo sendo ele o líder de mercado e reconhecido por sua usabilidade amigável.

O grau de integração e facilidade de uso das aplicações soberanas, é maior por natureza.

13 PROJETOS QUE ESTÃO QUEBRANDO OS PARADIGMAS DA WEB TRADICIONAL

Felizmente, uma série de projetos têm surgido com o objetivo de resolver os problemas da web tradicional, desde plataformas que rodam sobre a internet até redes mesh físicas:

Sneer – Meu próprio projeto é uma plataforma de computação soberana que usa o conceito de UX (experiência do usuário) do Whatsapp como plataforma para apps soberanas. Já roda em Android como prova de conceito.

Solid – “Criado pelo inventor da World Wide Web, Tim Berners-Lee, é um projeto que quer reformular a web como conhecemos, promovendo uma nova geração de aplicativos. Você possui os seus dados e escolhe aplicativos para gerenciar.”

Telegram Open Network – Plataforma híbrida de rede P2P e blockchain, proposta pelo Telegram, concorrente do WhatsApp.

Substratum – “Descentraliza a web e aproveita o poder do indivíduo. Qualquer pessoa pode publicar e participar.”

ZeroNet – “Sites abertos, grátis e sem censura, usando criptografia Bitcoin e a rede BitTorrent. Feito pela comunidade, para a comunidade.”

Tox – “Um novo tipo de mensagem instantânea. Fácil de usar, é um software que conecta você com seus amigos e com a família sem ninguém mais ouvindo.”

GNUnet – “Uma rede alternativa para a construção de aplicativos distribuídos de forma segura e que preservam a privacidade. O objetivo é substituir os protocolos da internet insegura.”

Essentia – “Interoperabilidade para a nova Internet. O Essentia é um sistema operacional que nos permite criar poderosas interações e experiências com nossos dados.”

Skycoin – “A nova internet para o novo mundo. Essa é a plataforma blockchain mais avançada do mundo. Desenvolvida pelos primeiros colaboradores do Bitcoin e do Ethereum, é completamente segura, infinitamente escalável e independente do ISP.”

Hyperboria – “Considerada uma rede de privacidade sem fronteiras, é uma comunidade de iniciativas locais de programadores e entusiastas.”

Mapa de projetos no espaço da computação soberana e as camadas nas quais atuam. Fonte: You Broke The Internet

NYC Mesh – “Permite a substituição da conexão da sua internet atual, com o objetivo de criar uma rede aberta, resiliente e neutra que sirva tanto para uso diário da internet quanto para uso emergencial durante quedas de energia ou interrupção da internet.”

Mobilicom – “Uma rede totalmente conectada de “autogerenciamento” e “autocorreção”, em que todas as unidades são conectadas entre si, garantindo a conectividade mesmo em condições extremamente adversas.”

Serval – “Sistema de telecomunicações composto por pelo menos dois telefones celulares que podem funcionar fora da faixa normal de torres de telefonia móvel.”

Sonnet – “Dispositivo que se conecta sem fio ao seu smartphone e permite o envio de texto, mensagens de voz, imagens, dados, arquivos e localizações de GPS para outros usuários Sonnet a vários quilômetros de distância, sem torre de celular e sem satélite.”

ENFIM, UMA PROVOCAÇÃO

2019 está para a computação soberana como 1979 estava para o surgimento dos computadores pessoais. As peças estão aí. Agora, é “só” uma questão de juntá-las, tendo a experiência do usuário como foco central e um bom marketing para alavancar a coisa toda.

É nisso que pecam os projetos acima.

Tendo complexidade similar à do WhatsApp, o projeto da plataforma soberana é um projeto para uma dúzia de bons desenvolvedores e designers. Não é um projeto grande, mas está além do que consigo fazer sozinho nas horas vagas e com voluntários me ajudando esporadicamente.

A computação soberana não tem como ser monetizada diretamente. Trata-se de uma estratégia de infraestrutura, de longo prazo, como a da Red Hat com o Linux, que acabou de ser vendida para a IBM por USD 34 bilhões. Isso elimina investidores de curto e médio prazos.

Por ser um projeto de software livre, não precisamos pagar para causar a avalanche toda. Nosso trabalho é só lançar uma bolinha de neve morro abaixo e depois apoiar a comunidade.

É preciso alguém com visão e com capacidade de investimento moderado, para realizar a soberania: conectar as pessoas de verdade e tornar gradualmente obsoletas as gigantes da nuvem, assumindo a liderança tecnológica da internet mundial.


Autor: Klaus Wuestefeld

Artigo Original